Vida útil

Eu queria uma vida mais útil.
Não que eu seja completamente inútil. Não é isso!
Mas queria servir pra alguém além de mim.
Queria não me resumir a café, Clarice, mar e Marisa.
Queria ser o 'doninho' de alguém, como Amélie um dia foi.
Sinto falta de saber o que é amor de verdade: esse bicho papão que me assombra toda noite antes de dormir.
Queria ter um coração sereno, que encontrasse aconchego onde realmente há.
Às vezes, queria não querer.
Parece que a urgência em viver me atrapalha. Me consome.
Um instinto de sobrevivência que, ironicamente, me mata.
Como se a vida útil de um aparelho eletrônico qualquer estivesse chegando ao fim.
E quando acabar?
A vida do aparelho pode ser comprada em qualquer loja de eletrônicos.
Quanto a minha... receio que acabe sem utilidade.
Não terei como recarregá-la novamente.

Amor entre quatro paredes

A vida deu uma forcinha lhes colocando na mesma rede. Rede social.
Até então, os contatos eram superficiais, como acontece com a maioria das pessoas.
O acaso foi mais ousado, lhes colocou no mesmo ambiente. Cheio de barulhos ensurdecedores, bebidas e muita 'alegria alcoólica'! O encontro não poderia ter dado mais certo.
Ironicamente, o lugar nada reservado, lhes aproximava, lhes atraia, como se faz com os lados opostos de um imã.
O desejo, mais ousado ainda, lhes levou para quatro paredes. Uma espécie de quarto secreto, no final de um caminho por onde quase ninguém passava.
Ela não era tão bonita. Não tinha os padrões de beleza impostos pela sociedade.
Ele era um belo rapaz, pelo menos aos olhos da mocinha.
A vida foi um tanto difícil para o coração da moça de pele clara, cabelo escuro, olhar profundo e sorriso fácil, embora dissessem que ela tinha cara de mal quando não sorria.
O rapaz era simpático, tinha pele morena, lábios carnudos e chamativos. Pediam beijos sem pedir. Do coração dele sabe-se pouco. Tivera poucos relacionamentos amorosos e parecia estar num dilema.
A moça, mesmo sob efeito da bebida, descobriu no primeiro beijo que o seu coração bateu mais forte. Tinha certeza que não haveria apenas aquele encontro. Ela tinha razão.
Os encontros no quarto secreto foram ficando mais frequentes. Raramente se encontravam fora daquele ambiente. Uma vez ou outra saiam para respirar outros ares, o amor deles estava familiarizado com as paredes do quarto.
A moça, por ser carente de atenção, já não se contentava com a periodicidade dos encontros. Ela queria mais. Suspirava ansiosa para estar com o amado.
O amado suspirava, nas redes sociais, no telefone, em casa. Ela se convencia da saudade de ambos, mas não aceitava os suspiros de longe. Queria suspirar de perto. Suspiros divididos são mais prazerosos.
Em uma noite incomum, decidem sair da rotina. Faria bem para ambos.
Não foram juntos, mas encontraram-se como combinado.
Era um lugar agradável, alto astral, cheio de gente bonita, 'alegria alcoólica' exalava no ambiente, mas era um lugar mais especial. Parecia ser reservado para extravasar o amor do, até então, tímido casal.
Irônico lugar.
O primeiro abraço foi aconchegante, assim como o primeiro beijo.
A moça parecia feliz por estar ali, num ambiente incomum. Mas a felicidade acabou no segundo beijo, ou melhor, na segunda tentativa de beijo.
O rapaz parecia muito tímido para demonstrar amor em público. Não se sentia muito a vontade com carinho explícito, afagos fora das quatro paredes não lhe despertava interesse.
Os abraços apertados foram se afrouxando ali. Os beijos e olhares apaixonados ficaram trancados dentro do maldito cubículo.
Ela não entendeu. Desconhecia aquela situação, pois se acostumara a ter o carinho do amado sem restrição, em todos os incontáveis encontros que tiveram. Tentou argumentar, mas foi em vão. O rapaz estava 'posudo', convicto. Desprezível.
A moça engoliu a decepção, foi pra casa, refletiu e chegou a conclusão de que não vale a pena alimentar um amor que só existe entre quatro paredes.
Acredita ainda que vai encontrar o amor, mas já não pensa em trancafiá-lo, pretende vivê-lo com liberdade. Um amor que vá além das paredes de um quarto qualquer.

Vinte e dois de outubro

Há dias em que a vida passa despercebida. Parece que não se vive.
Amanhece. Há sol, rotina, há tudo no mesmo lugar, menos você.
Eu não estou no mesmo lugar. Estou distante, passando pelo dia.
O clima muda, você se percebe vivo. Assiste, ri, cuida do corpo e se olha no espelho.
Anoitece e do lado de fora ouço "ventos, ventania". Penso que "daqui a um mês", a noite vai ser diferente: terei um amor por perto, pra falar sobre a vida ou não precisar falar sobre nada. Apenas olhar e sorrir. Quando estão juntos ouvem e acreditam: "um dia a gente há de ser feliz, se Deus quiser!".
Mas, por hoje, um "pequeno príncipe" me espera na cama. Vou lê-lo, ou melhor, relê-lo. Suspirando e pressionando as páginas contra o peito. Pra sentir. Me sentir. Pra lembrar que tenho um coração que pulsa. Que tenho uma alma sinestésica.
O frio que sinto por dentro é maior do que a temperatura fora do quarto. O céu fecha, fica nublado. Chove torrencialmente.
Por dentro o coração reflete o tempo. Nubla. Espera o sol ou espera apenas adormecer, pois acredita em ditados: "depois da tempestade vem a bonança".
Acredita em amor também. Acredita em si.
É um coração forte. Sabe aproveitar a chuva também. Sabe viver em dias de sol ou dias nublados.
Com o tempo, aprendeu um pouco sobre o viver. Sobreviver!

Dilema

Era uma palavra pouco usada por mim, aliás, nunca parei pra pensar no que ela significava de fato. Só há duas semanas atrás é que ela veio fazer sentido, ou não.
Eu tinha a ideia do que era um dilema, mas acho que nunca havia vivido um. Pensando bem, ainda não vivi.
Segundo alguma descrição vaga e superficial, dilema é um problema que oferece duas soluções, sendo que nenhuma das quais é aceitável. Em outro lugar li que dilema é uma situação em que se deve tomar UMA de DUAS decisões difíceis.
Pra mim, hoje, dilema é esperar.
Esperar que se decida algo que já está resolvido, pelo menos para mim.
Não consigo conceber que dilema esteja relacionado a sentimento.
Em se tratando de amar, pra mim não há dilema. Amar nunca foi problema; é solução. É decisão e, portanto, para amar não deve haver dúvidas.
Amar é questão de entrega. Toda escolha difícil envolve risco. Amar é correr riscos também. Viver é arriscar-se!
Enquanto se vive um dilema, a vida não espera. Passa.
Outro dia uma grande amiga me disse que eu era muito 'instável'. Concordei completamente. Nunca fui estável. Sou transeunte da vida. Passageiro. Em muitas situações pareço não saber o que quero. Indeciso.
Mas, quando se trata de amor, ou da ideia que tenho dele, sei bem o que quero. Sei que não há dilema. Sei que quero viver. Intensamente. Apressadamente. Sem perder tempo, apenas viver!
Se preocupar com o amanhã a ponto de não viver o hoje é esforçar-se em vão. O que garante o amanhã? Nada!
Vou deixar pra usar essa palavra mais tarde... talvez. Mas, por hoje, só por hoje, decido não viver dilema. Decido viver amor. Isso me basta!

O sítio

Enchia os pulmões como se pudesse respirar o mesmo ar de alguns anos atrás.
O sítio sempre foi o lugar preferido do pequeno João Pedro. Hoje, aos vinte anos, não tão pequeno assim.
Formara-se em Medicina Veterinária na cidade grande, onde passou a viver desde a adolescência.
Voltar àquele lugar era como ver um filme onde o personagem principal era a mesma pessoa que via no espelho embaçado do apartamento.
O pé de amora, carregado da doce e púrpura fruta, tinha mudado. Parecia estar bem menor, observou João ao chegar perto da árvore.
Sentiu falta da goiabeira que ficava próximo a horta. Ela havia morrido no verão passado, atacada por uma praga que levou o caseiro a cortá-la pelo tronco. Em compensação, conheceu novas árvores que cresceram ao longo dos anos em que não pisava naquele lugar.
O lago ainda era o mesmo, mas, ao contrário da amoreira, parecia estar bem maior. O rapaz lembrou-se dos tempos em que seu pai o ensinava a nadar ali. Os olhos encheram-se de lágrimas.
O pai era um homem muito ocupado com os negócios: comprar gado, vender terra, plantar, colher, enfim, a vida de um grande produtor era bastante agitada. O pouco tempo que tinha ao lado do pai era desfrutado a conta-gotas, sem pressa.
Foi inevitável misturar as lágrimas às águas do lago. O pai havia falecido há poucos meses. O sítio lhe tinha ficado como herança e estava decidido a vendê-lo, já que cuidar de bicho na cidade grande seria o seu destino de agora em diante.
Antes de vender, veio a ideia de voltar ao lugar onde passara sua infância. Só estava ali para avaliar melhor o valor que cobraria pela terra que herdara.
A cidade grande, sem dúvida, era mais atraente, convencia-se João Pedro. A agitação que conhecera ao longo dos anos, na metrópole, parecia ter apagado da memória a tranquilidade que sentia ao deitar-se na varanda, ao entardecer, ouvindo o som das águas do lago.
Não queria lembrar-se de quando alimentava os patos e galinhas, nem do dia em que caiu do pé de tamarindo ao tentar colher um fruto. Era impossível não lembrar, a frondosa árvore continuava de pé e estava ali à sua frente naquele exato momento.
Sem olhar para trás, João decide voltar para a cidade.
A cor cinza da metrópole ofusca-lhe os olhos. O ar pesado das ruas sufoca-lhe os pulmões. Os dias seguintes à visita ao sítio deram-lhe uma sensação estranha: um menino parecia gritar dentro dele. Pedrinho, como era chamado pelos pais, queria correr e foi justamente o que fez.
Correu para o apartamento, arrumou as malas e, sem exitar, partiu para o sítio.
Nem olhou pelo retrovisor. A cidade sumiu sem que ele percebesse.
Em algumas horas de viagem estava de volta à infância.
Descalço, correu para o lago; mergulhou; comeu amoras e adormeceu na varanda. Descobriu, então, o maior valor que o sítio tinha: torná-lo, novamente, o pequeno João.


(Texto publicado na edição do mês de junho do jornal Balaio Rural, de Imperatriz-MA)